A Carvena – José
Saramago
Págs.126, 127
(...)
Cipriano Algor
afastou-se em direção ao forno, ia murmurando, como uma cantilena sem
significado, Marta, Marçal, Isaura, Achado, depois por ordem diferente, Marçal,
Isaura, Achado, Marta, e outra ainda, Isaura, Marta, Achado, Marçal, e outra,
Achado, Marçal, Marta, Isaura, enfim juntou-lhes o seu próprio nome, Cipriano,
Cipriano, Cipriano, repetiu-o até perder a conta das vezes, até sentir que uma
vertigem o lançava para fora de si mesmo, até deixar de compreender o sentido
do que estava a dizer, então pronunciou a palavra forno, a palavra alpendre, a
palavra barro, a palavra amoreira, a palavra eira, a palavra lanterna, a
palavra terra, a palavra lenha, a palavra porta, a palavra cama, a palavra
cemitério, a palavra asa, a palavra cântaro, a palavra furgoneta, a palavra
água, a palavra olaria, a palavra erva, a palavra casa, a palavra fogo, a
palavra cão, a palavra mulher, a palavra homem, a palavra, a palavra, e todas
as coisas deste mundo, as nomeadas e as não nomeadas, as conhecidas e as
secretas, as visíveis e as invisíveis, como um bando de aves que se cansasse de
voar e descesse das nuvens, foram pousando pouco a pouco nos seus lugares,
preenchendo as ausências e reordenando os sentidos. Cipriano Algor sentou-se
num velho banco de pedra que o avô fizera colocar ao lado do forno, apoiou os
cotovelos nos joelhos, o queixo nas mãos juntas e abertas, não olhava a casa
nem a olaria, nem os campos que se estendiam para lá da estrada, nem os telhados
da aldeia à sua direita, olhava só o chão semeado de minúsculos fragmentos de
barro cozido, a terra alvacenta e granulosa que por baixo deles aparecia, uma
formiga extraviada que erguia nas mandíbulas potentes uma pragana com duas
vezes o seu tamanho, o recorte de uma pedra de onde a fina cabeça de uma lagartixa
espreitou, para logo se sumir. Não tinha pensamentos nem sensações, era apenas
o maior daqueles pedacinhos de barro, um torrãozinho seco que uma leve pressão
de dedos bastaria para esfarelar, uma pragana que se soltara da espiga e era
transportada pelo acaso de uma formiga, uma pedra aonde de vez em quando se
acolhia um ser vivo, um escaravelho, ou uma lagartixa, ou uma ilusão.
(...)
4 comentários:
pronunciar a Palavra...
Beijinho
LauraAlberto
Laura,
é uma doideira altamente viajante pronunciar, escrever ou como às vezes falo com as meninas, desenhar as letras/palavras, gesticular, as pontas dos dedos lendo todos aqueles pontinhos/palavras, o entendimento, e toda a conexão dos sentidos ao que chega
é deslumbrante toda forma
beijos
pleno, pleno
beijo
Ei, Assis
é muito por demais e é tanto que neste caso deixe que entorne e derrame
beijos
Postar um comentário