segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Sobre as palavras


A Carvena – José Saramago

Págs.126, 127
(...)
Cipriano Algor afastou-se em direção ao forno, ia murmurando, como uma cantilena sem significado, Marta, Marçal, Isaura, Achado, depois por ordem diferente, Marçal, Isaura, Achado, Marta, e outra ainda, Isaura, Marta, Achado, Marçal, e outra, Achado, Marçal, Marta, Isaura, enfim juntou-lhes o seu próprio nome, Cipriano, Cipriano, Cipriano, repetiu-o até perder a conta das vezes, até sentir que uma vertigem o lançava para fora de si mesmo, até deixar de compreender o sentido do que estava a dizer, então pronunciou a palavra forno, a palavra alpendre, a palavra barro, a palavra amoreira, a palavra eira, a palavra lanterna, a palavra terra, a palavra lenha, a palavra porta, a palavra cama, a palavra cemitério, a palavra asa, a palavra cântaro, a palavra furgoneta, a palavra água, a palavra olaria, a palavra erva, a palavra casa, a palavra fogo, a palavra cão, a palavra mulher, a palavra homem, a palavra, a palavra, e todas as coisas deste mundo, as nomeadas e as não nomeadas, as conhecidas e as secretas, as visíveis e as invisíveis, como um bando de aves que se cansasse de voar e descesse das nuvens, foram pousando pouco a pouco nos seus lugares, preenchendo as ausências e reordenando os sentidos. Cipriano Algor sentou-se num velho banco de pedra que o avô fizera colocar ao lado do forno, apoiou os cotovelos nos joelhos, o queixo nas mãos juntas e abertas, não olhava a casa nem a olaria, nem os campos que se estendiam para lá da estrada, nem os telhados da aldeia à sua direita, olhava só o chão semeado de minúsculos fragmentos de barro cozido, a terra alvacenta e granulosa que por baixo deles aparecia, uma formiga extraviada que erguia nas mandíbulas potentes uma pragana com duas vezes o seu tamanho, o recorte de uma pedra de onde a fina cabeça de uma lagartixa espreitou, para logo se sumir. Não tinha pensamentos nem sensações, era apenas o maior daqueles pedacinhos de barro, um torrãozinho seco que uma leve pressão de dedos bastaria para esfarelar, uma pragana que se soltara da espiga e era transportada pelo acaso de uma formiga, uma pedra aonde de vez em quando se acolhia um ser vivo, um escaravelho, ou uma lagartixa, ou uma ilusão.
(...)

4 comentários:

Anônimo disse...

pronunciar a Palavra...

Beijinho
LauraAlberto

Vais disse...

Laura,
é uma doideira altamente viajante pronunciar, escrever ou como às vezes falo com as meninas, desenhar as letras/palavras, gesticular, as pontas dos dedos lendo todos aqueles pontinhos/palavras, o entendimento, e toda a conexão dos sentidos ao que chega
é deslumbrante toda forma

beijos

Unknown disse...

pleno, pleno


beijo

Vais disse...

Ei, Assis
é muito por demais e é tanto que neste caso deixe que entorne e derrame

beijos

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