terça-feira, 23 de abril de 2013

Das minhas vergonhas e a Bendita Paula



Aconteceu antes do barraco. A morada era um apartamento num bloco de três prédios. O espaço pra meninada brincar ficava na garagem, um espaço depois da subida da rampa ao portão, uma pequena quadra, uns banquinhos de pedra onde ficávamos às vezes sentadas para ver as crianças brincando. Pela garagem tínhamos acesso aos três prédios, a Paula, seu marido e suas duas filhas moravam no prédio do meio e sempre descíamos com as meninas, as dela Tatá e Lalá e eu com a Juju.
Naquela manhã descemos como de sempre, água, uns biscoitinhos, um suco e os brinquedos, eu pouco sentava, pois tinha que ficar atrás da Júnia ainda pequena evoluindo e firmando sua condição de bípede, mas neste dia me sentei ao lado da Paula que lia sua revista. Coisa de minuto ela larga a revista, me olha e dá início ao diálogo:
(A conversa rendeu mais do que aqui vai, resumi para o que importou)
_ Edelvais, quero te falar uma coisa.
_ Claro, Paula, pode falar.
Notei uma certa resistência nela.
_ Que foi, Paula, pode dizer. – e sorri.
_ Você não vai se chatear?
_ Êta, mulher, desembucha!
_ Você sabe, né, que todo nosso lixo que é recolhido vai para os aterros.
_ Sei sim, Paula.
_ E você sabe o que acontece nesses lixões?
_ Você fala com relação a que?
_ Falo sobre todas aquelas famílias que ficam nos lixões catando coisas para vender ou aproveitar e até mesmo para comer.
_ Sei, Paula, e é tão triste, né?
_ É sim, Edelvais, é muito triste e tudo que aquelas pessoas conseguem recolher e conseguem vender é o que muitas vezes garante a sobrevivência da família.
Ela para, pensa um pouco, eu espero e ela continua:
_ Então, estes materiais que eles vão recolhendo para vender, só conseguem se a coisa tiver num estado que dê pra vender, senão não pegam, até mesmo os catadores que às vezes passam aqui na rua só pegam o que tiver bom pra vender ou para reaproveitar. Bem, Edelvais, o que quero te dizer é que reparei..., olha só, não pense que tô te vigiando...
_ Ah, qualé, Paula!
Ela ri e continua:
_ Pois é, reparei que você junta tudo num saco só.
Nisto minha cara começou a esquentar.
_ É, Paula, é verdade, junto tudo num saco só.
_ Ei, Edelvais, suas bochechas tão envermelhando.
Meu rosto todo já tava pegando fogo, sentia ele todo quente, e sabia que devia tá vermelho que nem um tomate dos bem madurinhos. Dei um sorriso e disse:
_ Putz, Paula, caramba, é a mais pura vergonha, tá valendo, tudo bem, continua.
Ela sorriu e continuou:
_ Aí, é que quando a gente separa estes materiais na nossa casa, pelo menos eles ficam menos contaminados, pelo menos podemos facilitar um pouco a vida destas pessoas, seja aqui na porta dos prédios ou lá nos lixões. Daí, é que eles podem recolher mais um pouco das coisas para poderem vender e tirar um a mais, que é pouco mesmo, quase nada, sei lá deve fazer uma diferencinha.
Paramos para olhar as meninas e ela perguntou:
_ Então, Edelvais, por que você não começa a separar as coisas na sua casa? Sei que também é quase nada, mas é um pelo menos.
Olhei bem pra ela e disse:
_ Paula, minha querida você é uma mulher Bendita, Bendita Paula!
_ Você não ficou com raiva?
_  Pelo que? Por você ter me dado este toque? Tá doida? Só tenho que te agradecer e hoje mesmo já tô separando, metendo a mão na lixeira e separando tudo.
Eu ri, ela riu, demos um abraço.
Nisso já era hora de subir, pegamos as meninas e cada uma foi pra sua casa.
Eu fiquei de barriga de novo, da Leninha, e mudamos pro barraco, Paula e sua família voltaram pro norte e as nossas meninas vão crescendo sabendo da importância e tendo a prática de separar os materiais.


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Ilha das Flores

4 comentários:

Unknown disse...

este filme de tanto brincar de ficção resulta numa realidade bruta,


beijo

Vais disse...

na verdade tudo até o resto

cheiro

Unknown disse...

rastos e rostos que não são restos... porque toda a palavra desafia a cegueira.

beijinho, vais!

Vais disse...

"porque toda a palavra desafia a cegueira"

beijo, querido moço

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