terça-feira, 3 de agosto de 2010

Clarice Lispector

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres

Págs. 82, 83, 84 - 18ª edição

(...)
Ulisses falou:
_ Bem tranquila, Lóri, vá bem tranquila. Mas cuidado. É melhor não falar, não me dizer. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio. Por que é que você olha tão demoradamente cada pessoa?
Ela corou:
_ Não sabia que você estava me observando. Não é por nada que olho: é que eu gosto de ver as pessoas sendo.
Então estranhou-se a si própria e isso parecia levá-la a uma vertigem. É que ela própria, por estranhar-se, estava sendo. Mesmo arriscando que Ulisses não percebesse, disse-lhe bem baixo:
_ Estou sendo...
_ Como? Perguntou ele àquele sussurro de voz de Lóri.
_ Nada, não importa.
_ Importa sim. Quer fazer o favor de repetir?
Ela se tornou mais humilde, porque já perdera o estranho e encantado momento em que estivera sendo:
_ Eu disse para você _ Ulisses, estou sendo.
Ele examinou-a e por um momento estranhou-a, aquele rosto familiar de mulher. Ele se estranhou, e entendeu Lóri: ele estava sendo.
_ Eu também, disse baixo Ulisses.
Ambos sabiam que esse era um grande passo dado na aprendizagem. E não havia perigo de gastar este sentimento com medo de perdê-lo, porque ser era infinito, de um infinito de ondas do mar. Eu estou sendo, dizia a árvore do jardim. Eu estou sendo, disse o garçom que se aproximou. Eu estou sendo, disse a água verde na piscina. Eu estou sendo, disse o mar azul do Mediterrâneo. Eu estou sendo, disse o nosso mar verde e traiçoeiro. Eu estou sendo, disse a aranha e imobilizou a presa com o seu veneno. Eu estou sendo, disse uma criança que escorregara nos ladrilhos do chão e gritara assustada: mamãe! Eu estou sendo, disse a mãe que tinha um filho que escorregava nos ladrilhos que circundavam a piscina. Mas a luz se aquietava para a noite e eles estranharam, a luz crepuscular. Lóri estava fascinada pelo encontro de si mesma, ela se fascinava e quase se hipnotizava.
(...)
.

6 comentários:

Anônimo disse...

Eu acho que o mais bacana neste trecho que você selecionou está aqui:

"Ela se tornou mais humilde, porque já perdera o estranho e encantado momento em que estivera sendo".

A partir do momento em que se tenta transformar em palavras o indizível - essa fluidez inoninável da vida (estar sendo) - o encanto e a estranheza acabam mesmo se perdendo.

Um abraço, Vais.

Marcelo F. Carvalho disse...

Vais, este foi o primeiro livro que "desflorei" da Clarice. Absolutamente marivilhoso!
Lori (que vem de Loreley) é a sereia que encanta Ulisses (de Homero). A mulher que é toda emoção e (re)encontro - que vem do mar=emoção.
________________________
Putz, cê me deixou com um gosto bom de Literatura na boca. Uma Aprendizagem foi um puta livro pra mim.

Marcello disse...

Oi, Vais.
Anotado: "Uma Aprendizagem" - bora correndo ler.
"A hora da estrela", que reli há pouco, é extraordinário.
Obra rica, que situa a própria linguagem no plano do enredo. O autor – alheio ao ‘deus’ que escreve, e que é o próprio ato de escrever – é um dos personagens que narra a história de outro personagem – alheio, por sua vez, à própria existência. E do ponto de vista do ‘deus’ que escreve, a linguagem se situa num plano intermediário para fazer parte da história.

E, por trás de tudo isso, Clarice...

Abraço.

Jorge Pimenta disse...

olá, vais,
vi que deste um pulinho lá ao viagens de luz e sombra onde depuseste palavras-flor que colhi com enorme gratidão. retribuo a visita, aproveitando para te felicitar pela beleza do espaço e dos textos seleccionados. lispector, a abrir, é, no mínimo, um excelente cartão de visita!
um beijinho!

Vais disse...

Olá Professor,
bom de ter você por aqui.
fico vendo assim que somos feitos de momentos, alguns são tão bons que se pudéssemos prolongá-los pela eternidade... e às vezes não há palavras que possam expressá-los, é uma coisa tão interna e intensa, fico mesmo admirada, fascinada com quem consegue fazer isto, e a Clarice é destas pessoas, e este encanto e estranheza, penso que vão e vem, vão e vem...
abração prati Halem

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Ei Professor Marcelo,
bom também de ter você por aqui
Lindo! Lindo! este livro, quando trouxe este trecho, ainda estava lendo, já terminei, e fico encantada ainda mais com a Clarice, pois só tinha lido A hora da Estrela, mais de uma vez, diga-se.
que bom que deu um gosto bom
um abraço

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Saudações Marcello,
seja bem vindo
ó pode ir mesmo bora correndo, é uma leitura das boas
Li mais de uma vez A hora da Estrela, e da última saiu isto
'Macabéa do Rodrigo
Rodrigo da Clarice
Macabéa é uma sombra
A sombra de uma gente
A sombra sombria que nos assombra
em noites quentes e frias
Fantasma que vaga
por entre outras sombras
Assombração que te espera
com vela acesa
numa encruzilhada calçada de piche
A sombra da Macabéa te espreita
tira seu sono
A Clarice pôs o Rodrigo a sentir
e por vezes
a mulher no Rodrigo chora a Macabéa
não a sua sombra
somente ele a vê
somente ele a sente
ele a tem
E nós, e nós, e nós...'

volte sempre que rolar
abraço

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Saudações Jorge,
seja bem vindo, moço
agradecida, também
a visita, as palavras
e Clarice é algo que toca
desde a superfície com os arrepios vindos lá do fundo até as entranhas que geram o levantar dos pelos
beijinho pra ti também e volte sempre que desejar

Vais disse...

Olá Professor Marcelo,
é porque também li outro livro dela, 'O Mistério do coelho Pensante', um livro para criança(eheh de qualquer idade), que a Júnia ganhou, super legal.
beijo

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