Li A Caverna, e este livro do Saramago, mexeu, revirou, impressionou, abestalhou, abobalhou tanto, que resolvi trazê-lo pro Canto. Esta pretensão veio antes de terminar de lê-lo, há meses atrás, mas não sabia para quando seria, então, de toda forma, as mãos e seus dedos anteciparam a colocação. Como não comecei do começo, a não ser pela citação do Platão, continuarei por temas, porque também, não tinha pensado em como o colocaria. Esta passagem das mãos encaixou bem com a relutância das minhas, esses dias, pra reproduzirem em escrita alguns pensamentos, que não sejam os meus então, e nada melhor de quem tem, e como, as manhas. Apesar de outras passagens se referirem às mãos e ao que vem delas, não continuarei nelas, outro tema virá.
Inté.
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(finalzinho da p. 82; p.83)
Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio dos olhos que vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a ortografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. Manda a verdade que se diga que o cérebro é muito menos entendido em cores do que crê. É certo que consegue ver mais ou menos claramente visto o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezes sofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter em conhecimento o que viu. Graças à inconsciente segurança com que a duração da vida acabou por dota-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chama elementares e complementárias, mas imediatamente se perde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando e que provavelmente nunca chegará a receber o seu justo nome.
=> o destaque é meu.